No fim de semana de 31 de agosto e 1 de setembro de 2024, mais de 130 pessoas de 29 países reuniram-se para dar início ao “Projeto por uma Internacional Marxista Revolucionária”. A reunião foi centrada na definição da estrutura deste novo projeto, destinado a reconstituir, uma nova Internacional Marxista.
Esse processo tornou-se uma necessidade urgente face à falência política e ao rápido colapso que atualmente envolve a Alternativa Socialista Internacional (ASI) - uma crise desencadeada a partir da denúncia de um caso grave de abuso sexual praticado por um quadro importante da organização, e que foi agravada pelo tratamento vergonhoso da sua atual liderança, que também tentou encobrir o caso.
Os responsáveis por este desastre não só se recusaram a prestar contas politicamente pelo que fizeram, mas também exerceram o seu controle sobre o aparelho da ASI para marginalizar, desacreditar e ofuscar todas as pessoas que se opuseram a esta má gestão. Os danos imensuráveis causados por esta abordagem corrosiva no núcleo e na base das fileiras da ASI é difícil de exprimir em palavras. Muitos/as camaradas e sobreviventes foram profundamente afetados/as, e os danos são muito mais profundos do que alguns gostariam de admitir.
Aos olhos de todas as pessoas que estão empenhadas no Projeto, esta experiência marcou uma profunda traição política de tudo o que a ASI outrora pretendeu defender, e infligiu danos irreversíveis à capacidade interna e à credibilidade pública desta organização para lutar contra as opressões e a violência de gênero.
Como Rosa Luxemburgo disse uma vez, “a coisa mais revolucionária que se pode fazer é sempre proclamar em alto e bom som o que está acontecendo”. O que está acontecendo hoje é que, enquanto o mundo grita por uma alternativa socialista revolucionária viável - com o genocídio em Gaza como a manifestação mais horrível da crise capitalista global em decadência - a ASI falhou tragicamente em responder a este desafio histórico.
No entanto, longe de apenas anunciar essa decadência e se precipitar em lançar algo novo, a reunião do Projeto para uma Internacional Marxista Revolucionária foi marcada por um profundo sentido de humildade e realismo. Enquanto nos debates do fim de semana os/as participantes demonstraram uma sede e um entusiasmo evidentes por este projeto, também reconheceram a necessidade vital de um exame profundo e introspectivo das raízes desta crise, para confrontar e aprender com os fracassos políticos e organizativos da ASI e do seu antecessor, o Comitê por uma Internacional dos Trabalhadores (CIT).
Só com uma abordagem paciente, sóbria, transparente e com autocrítica é que se pode alcançar a nitidez política, uma base indispensável para a construção de uma Internacional genuinamente revolucionária e saudável, capaz de resistir ao teste do tempo.
Construir uma Internacional hoje
A primeira sessão debruçou-se sobre as exigências políticas para construir uma nova Internacional hoje, e a necessidade de enraizar este processo numa interação dialética e viva com as condições atuais, as lutas e a consciência da classe trabalhadora e da juventude.
Para os/as marxistas, não basta apenas apoiar ou intervir nos movimentos, ou vê-los como campos de recrutamento; devem também participar ativamente deles, construí-los e aprender com eles. Sem esta troca recíproca, não podem desenvolver a sua própria teoria e programa, o que os/as torna incapazes de contribuir de forma significativa para os próprios movimentos.
Os/as participantes salientaram os perigos do sectarismo e da fetichização do isolamento, uma armadilha em que a atual liderança da ASI caiu. Inicialmente, a liderança fez um alarde irrealista ao afirmar que “não há barreiras objetivas ao crescimento”, ignorando os verdadeiros desafios que as organizações revolucionárias enfrentam para expandir a sua influência neste período.
Entretanto, os mesmos dirigentes mudaram de discurso, sem dar explicações, proclamando que os marxistas são “peixes em terra”, limitando-se efetivamente a uma postura rígida e defensiva, exatamente como o que sobrou do CIT. Essa recuo é marcada por um medo obsessivo do que chamam de “política identitária” (ou o que eles entendem por isso) e de uma diluição do caráter revolucionário do partido pelo envolvimento significativo com os movimentos sociais.
No entanto, como os/as marxistas têm frequentemente observado, os perigos do sectarismo e do oportunismo (por exemplo, sacrificar princípios fundamentais por ganhos a curto prazo) nunca estão longe um do outro. Têm em comum a tendência para moldar os princípios de modo a adaptá-los a uma narrativa mais confortável e menos desafiante, que pode ser facilmente propagada, em vez de se confrontarem com as questões reais e complexas que os/as revolucionários enfrentam.
Não existe uma receita simples para evitar estas armadilhas, mas são necessários debates contínuos e esforços persistentes para nos mantermos em sintonia com as camadas emergentes e combativas da classe operária e das pessoas oprimidas, especialmente a juventude - um enfoque que costumava ser uma marca do CIT durante o seu auge. No entanto, tanto o atual CIT como a ASI não conseguiram concretizar esta abordagem às exigências do novo período histórico. A eficácia com que este desafio é enfrentado determinará a sobrevivência e o sucesso dos avanços de qualquer internacional revolucionária.
Centralismo democrático
A ênfase foi também colocada na relevância do centralismo democrático para a construção de uma futura Internacional revolucionária - não como uma fórmula rígida para impor sistematicamente a “regra da maioria” face a desacordos, mas como um conceito político dinâmico, vivo e flexível.
A unidade na ação é, de fato, fundamental para qualquer organização que pretenda derrubar o capitalismo global. Mas essa unidade deve emergir o mais organicamente possível, com base no envolvimento e na discussão democráticos, o mais ampliado possível, conforme as condições o permitam.
Tal unidade não pode ser sustentada através da coerção, em que os “votos da maioria” são usados para manter o controle e servem como substituto de um genuíno debate político na organização. Este método de cima para baixo, típico do modus operandi da atual direção da ASI, não tem qualquer semelhança com as práticas de Lênin e dos Bolcheviques.
É por isso que a pressa em criar novas estruturas centralistas democráticas sem antes ter tempo para discutir e clarificar profundamente as bases políticas da nova Internacional, seria o mesmo que pôr a carroça à frente dos bois. Há um reconhecimento generalizado que será necessário um período de discussão prolongada antes de chegarmos a esse ponto. Durante esse tempo, as várias entidades empenhadas no Projeto irão discutir, testar e desenvolver um novo entendimento compartilhado.
Esta fase é fundamental para alcançar nitidez política e estabelecer a base programática para uma organização coesa e ao mesmo tempo, flexível e resistente no futuro - como resultado natural de um processo de discussão e trabalho colaborativo - bem como para eliminar os elementos tóxicos da cultura de construção partidária herdada do nosso passado. Dada a profunda crise, não só da nossa Internacional anterior, mas também da esquerda internacional em geral, a proclamação de uma nova Internacional, pronta a ser construída, sem lançar estas bases, seria prematura, inerentemente frágil e, em última análise, condenada ao fracasso.
A política deve ter sempre precedência, moldando as formas organizativas necessárias para pôr essa política em ação. Da mesma forma, a degeneração burocrática testemunhada tanto no CIT como na ASI é inseparável dos problemas políticos e ideológicos e dos pontos cegos que têm atormentado estas organizações - questões que o Projeto está determinado a combater de frente.
A importância do feminismo socialista e do trabalho contra as opressões
Neste contexto, na reunião foi reafirmado o papel central do Feminismo Socialista e da luta contra todas as formas de opressão - incluindo o racismo, a LGBTQIA+fobia, o capacitismo e o casteísmo - no trabalho da futura Internacional. A crise da ASI no último ano ilustrou claramente a necessidade de aprofundar a nossa compreensão destas questões e o seu significado na construção de uma organização preparada para liderar a luta contra o capitalismo.
Os acontecimentos atuais a nível mundial, nomeadamente os protestos explosivos contra o estrupro e o feminicídio na Índia - que levaram a Associação Médica Indiana a lançar uma greve histórica a nível nacional - reafirmaram o papel fundamental que estas questões desempenham na configuração das lutas e da radicalização de hoje, e reafirmaram quão absurdas foram as afirmações feitas pela atual direção da ASI de que as lutas feministas “atingiram o seu auge”.
Uma visão reducionista da classe e da luta de classes, que relega as batalhas contra opressões específicas como secundárias ou periféricas, enquanto eleva a luta econômica como o “assunto principal”, ainda permeia o pensamento tanto do atual CIT como da ASI. Foi destacada a necessidade de romper com esta abordagem equivocada e prejudicial, bem como de compreender a relação íntima entre exploração e opressão e de travar uma luta incansável para integrar plenamente estas lutas na esquerda e no movimento da classe trabalhadora.
Igualmente importante é uma reavaliação crítica do nosso histórico antirracista e anti-imperialista, e do que a construção de uma organização genuinamente internacionalista deve implicar nas condições atuais.
As experiências compartilhadas entre camaradas de seções e grupos de países neocoloniais como o Brasil, o México e a Índia pôs em evidência um padrão de condescendência, centrado no Ocidente, e de cima pra baixo, por parte de camaradas dirigentes da ASI baseados em seções de países imperialistas, e uma tendência, que remonta aos anos do CIT, para tratar o trabalho revolucionário nestas partes do mundo como um complemento do trabalho nos países capitalistas avançados. Obviamente esta abordagem é totalmente prejudicial para o desenvolvimento saudável dos quadros revolucionários.
A incorporação sistemática do rico legado das lutas anti-coloniais e anti-imperialistas, bem como das experiências atuais dos povos oprimidos de todo o mundo, na nossa análise e nos nossos métodos de trabalho, será um componente crítico da reconstrução de uma Internacional digna desse nome. Esta tarefa é mais urgente do que nunca, num contexto de escalada de conflitos inter-imperialistas, de um abismo crescente entre as nações avançadas do Norte Global e as regiões neocoloniais, de uma nova corrida imperialista pelos recursos naturais e de uma onda de revoltas do Quênia a Bangladesh.
A melhoria da diversidade da organização e da representação dos grupos demográficos oprimidos nas estruturas de direção, bem como o desenvolvimento de um grupo internacional antirracista, foram também identificados como passos importantes para resolver algumas destas fraquezas.
A nossa futura internacional deve também rejeitar qualquer mentalidade de “seção-mãe”. Embora ansiosos/as por transmitir a sua experiência, os/as bolcheviques estavam também perfeitamente conscientes dos riscos que representava o fato de os marxistas russos dominarem a vida da Terceira Internacional e impedirem o crescimento das seções mais recentes e menos experientes. A direção do CIT, apesar de ter começado com uma abordagem internacionalista, acabou por eliminar essas preocupações ao longo do tempo, tornando a sua composição e análise política cada vez mais isoladas e grotescamente desequilibradas, centradas na seção de Inglaterra e País de Gales.
No entanto, no seio da ASI, em vez de cultivar uma construção mais pluralista, partes importantes da direção internacional viram nos Estados Unidos o novo “modelo” a imitar. Ao contrário disso, a nossa futura Internacional deve se basear numa verdadeira cooperação revolucionária internacional - unida por princípios políticos fundamentais, mas abraçando e enriquecendo-se com a diversidade de experiências. Como o falecido marxista irlandês Peter Hadden explicou em “A Luta pelo Socialismo Hoje”: “na construção de um partido revolucionário não é possível proceder a partir da experiência de apenas um país”.
Estruturas provisórias
No final desta reunião de dois dias, foi eleito um comitê coordenador provisório para orientar a próxima fase, juntamente com uma equipe internacional de salvaguarda e proteção. Serão criados grupos de trabalho adicionais sobre finanças, mídia e feminismo socialista para coordenar o trabalho internacional. O processo estará aberto a novas contribuições e relatórios das diferentes entidades, de modo a garantir uma participação ampliada. A próxima reunião geral do Projeto será em novembro.
Embora uma revisão séria seja um elemento central do Projeto e um prelúdio necessário para o lançamento formal de uma nova internacional, não se pretende que este se torne um “clube de discussão” internacional voltado para dentro, mas um processo alimentado por intervenções contínuas em lutas reais e pelo início de trabalho prático e campanhas comuns. A este respeito, a Conferência Internacional da ROSA que realizaremos no próximo ano servirá como uma pedra angular fundamental.
Todos os indivíduos e grupos que assinam o Projeto são encorajados a participar ativamente neste processo, para ajudar a reconstruir, ao longo do tempo, a base para uma Internacional Marxista revolucionária saudável e sustentável. Esta reunião marcou o primeiro passo de uma jornada desafiadora, mas esperançosa. As fortes contribuições, particularmente dos/as camaradas mais jovens, demonstraram o potencial para uma internacional vibrante e orientada para o futuro, firmemente enraizada nos princípios socialistas e na luta contra todas as formas de opressão. ▉
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