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Serge Jordan

Revolta em massa força a primeira-ministra Sheikh Hasina a fugir de Bangladesh

Updated: Nov 16

Bangladesh está experienciando uma aceleração histórica espetacular. Na segunda-feira, 5 de Agosto, a Primeira-Ministra Sheik Hasina renunciou e sobrevoou a capital Dhaka em um helicóptero militar para a base Hindo Revolta em massa força a primeira-ministra Sheikh Hasina a fugir de Bangladeshn em Delhi, Índia, enquanto milhões de pessoas se agruparam nas ruas para celebrar o fim de seu governo. A apenas meio ano atrás ela tomou posse de seu quarto mandato consecutivo. Desafiando o toque de recolher em todo o país, grandes multidões invadiram o Palácio dela, a sede do governo, lembrando das cenas testemunhadas em Sri Lanka dois anos atrás. O que começou com um protesto de estudantes universitários se transformou em uma revolta completa. 


Estudantes protestem nas ruas de Bangladesh

Protestos estudantis entraram em erupção no início de Julho sobre a reintrodução do sistema de cotas de longa data para os empregos nos setores públicos que favorecem os descendentes dos “lutadores pela liberdade” -  aqueles que lutaram pela independência do país do Paquistão em 1971. Esse sistema de cotas, anteriormente arquivado pelo governo após protestos de larga escala em 2018, foi reintegrado por uma decisão do Tribunal Superior em Junho deste ano. Apesar de os reais descendentes dos lutadores pela liberdade serem menos de 1% da população, 30% dos trabalhos foram reservados para eles. Esse esquema se tornou efetivamente um disfarce para o nepotismo e o patrocínio do partido no poder, catalisando a raiva em uma situação onde dois quintos da juventude de Bangladesh estão sem emprego.


Sob pressão das massas, uma nova decisão do Supremo Tribunal, em 21 de Julho, eliminou a maior parte das quotas, reduzindo a quota de ex-militares de 30% para 5%, e alocando 93% dos empregos com base no mérito, com os restantes 2% reservados para grupos minoritários. Esta primeira vitória dos estudantes, provando a eficácia da sua luta, teve um sabor amargo: foi alcançada à custa de uma repressão sangrenta por parte das forças de segurança e de ataques violentos de bandos associados à Liga Awami, o partido no poder, e à sua ala estudantil, a Liga Chhatra. Mais de 200 pessoas foram massacradas no processo.


O uso pelo regime de concessões e de medidas violentas para tentar controlar a revolta estudantil apenas serviu para encorajar e enfurecer ainda mais o movimento, ao mesmo tempo que atraiu um apoio mais amplo. Após uma breve pausa, o movimento voltou às ruas; demandas por justiça e responsabilização para as vítimas da repressão estatal, e pela renúncia do primeiro-ministro, como o slogan “Ek dofa ek dabi, Hasina tui kobe jabi” (“Temos uma exigência; quando você irá, Hasina? ”) tornou-se a ordem do dia.


Do “Movimento Linguístico” de 1952 contra a imposição do urdu como única língua nacional no então Paquistão Oriental, à revolta em massa de 1969 contra o governo autocrático de Ayub Khan, ao movimento contra a ditadura militar de Hussain Muhammad Ershad no No final da década de 1980, o ativismo estudantil desempenhou um papel fundamental na história de Bangladesh. Uma dinâmica semelhante está em jogo desta vez. Mas a derrubada de Hasina só pode ser explicada pela onda mais profunda de fúria popular que cresceu como uma onda gigantesca, varrendo quase todos os segmentos da sociedade, incluindo um número crescente de trabalhadores.


Um Regime Odiado


Hasina e seu partido, a liga Awami, tem governado o país com um punho autoritarista crescente por quase duas décadas. Desde 2009, seu regime subordinou todas as partes do aparato do estado às suas necessidades, suprimindo qualquer sinal de dissidência, incluindo desaparições forçadas e mortes extrajudiciais. A maior parte da mídia do país pertence a negócios vinculados ao partido no poder. Partidos opositores como o Partido Nacionalista de Bangladesh (PNB) e o Jamaat-e-Islami(JeI) tiveram seus líderes presos ou forçados ao exílio. Todas as três eleições parlamentares sucessivas - em 2013, 2018 e 2014 - foram atoladas de violência contra a oposição e fraude eleitoral. As últimas eleições gerais, realizadas em Janeiro, viram uma participação baixa recorde de oficialmente 40%, embora se acredite que o número real seja muito menor.


Há muito aclamado como a garota propaganda do ressurgimento e desenvolvimento econômico no capital estrangeiro de Bangladesh, e como a líder feminina mais antiga do mundo, Hasina construiu um regime flutuando em um oceano de corrupção, onde o sistema de cotas é apenas um dos elementos mais óbvio .  O seu governo presidiu a um crescimento econômico fortemente dependente de uma indústria de vestuário orientada para a exportação, que explorava predominantemente trabalhadoras mulheres por salários escassos, para deleite das multinacionais estrangeiras. Quando essas trabalhadoras exigiram viver com dignidade durante uma onda de greves no final do ano passado, foram recebidas com insultos, prisões em massa e assassinatos policiais. 


O tratamento reservado aos estudantes que protestaram neste verão foi excepcionalmente brutal, com a repressão do regime resultando no maior número de mortos em Bangladesh desde a Guerra de Libertação em 1971 — sem mencionar a tortura generalizada, os ferimentos e as prisões. O desligamento total dos serviços de internet móvel e banda larga durou 10 dias. Longe de reprimir a revolta, esta violência se tornou um fator grandemente radicalizador, precipitando a queda de Hasina.


Domingo, dia 4 de Agosto foi um daqueles dias em que, como disse Lenin, “décadas acontecem”. Foi o primeiro dia de uma campanha de não cooperação lançada pelos Estudantes Contra a Discriminação, entidade  que tem liderado os protestos estudantis. Os organizadores persuadiram as pessoas a não pagarem os seus impostos e contas de serviços públicos, a não comparecerem ao trabalho e a que instituições governamentais e privadas, escritórios, tribunais, portos e fábricas permanecessem fechados. Muitos trabalhadores seguiram o exemplo e foram vistos aderindo ao movimento de não-cooperação – incluindo no indústria têxtil  que é central para a economia do país  


Apesar de domingo ser dia útil em Bangladesh, inúmeras lojas e bancos em Dhaka permaneceram fechados. O apelo à demissão de Hasina ressoou das grandes cidades às pequenas aldeias, com milhões de manifestantes a sair às ruas. À medida que os confrontos entre as forças pró-regime e os manifestantes se intensificavam, mais de 100 pessoas foram mortas apenas nesse dia, elevando o número de mortos desde o início do movimento para mais de 300.  Entre esse número incluíram mais de uma dúzia de polícias e meia dúzia de apoiadores  da Liga Awami, que tentaram atacar os jovens mas encontraram eles  preparados para se defenderem. A notícia de que mais cem pessoas tinham morrido trouxe ainda mais manifestantes às ruas, desafiando totalmente o toque de recolher obrigatório imposto pelo governo.


Na manhã de segunda-feira, quando os Estudantes Contra a Discriminação chamaram uma “Marcha para Dhaka” em resposta a esta nova onda de terror de Estado, mais e mais pessoas foram à capital. Foi imposto um desligamento total da Internet, suspenso às 12h30, horário local. Para Hasina, porém, já era tarde demais. 


O papel do exército 


De acordo com o website de notícias indiano The Quint, o Chefe do Exército, General Waker-uz-Zaman, estava sob pressão dos seus oficiais subordinados para não ordenar disparos contra os manifestantes, indicando crescente descontentamento e vacilo entre as tropas – até mesmo simpatia aberta pelo movimento em algumas áreas. No domingo, surgiram vídeos online mostrando soldados protegendo estudantes que protestavam contra agressores pertencentes à Liga Awami.


Na manhã de segunda-feira, Waker-uz-Zaman instruiu os comandantes divisionais a pararem de disparar - apesar de a primeira-ministra ter dado instruções claras ao exército para impedir a marcha até ao seu gabinete de qualquer forma. Assim que ficou claro que as Forças Armadas não viriam em seu socorro, o destino de Sheikh Hasina foi selado.


Pouco depois da renúncia de Hasina, o alto escalão do exército anunciou que seria formado um novo governo interino e seriam iniciadas negociações para esse efeito com os líderes estudantis e os principais partidos da oposição. Na televisão, Waker-uz-Zaman pediu ao público para ter paciência e manter a confiança no exército. “Nós também vamos garantir que a justiça seja feita por todas as mortes e crimes ocorridos durante os protestos”, ele disse. Isto é como uma raposa prometendo guardar o galinheiro. Waker-uz-Zaman é o tio de Hasina! Sem a ajuda dele e dos militares, Hasina não teria sido capaz de exercer tal tirania. 


Como os revolucionários aprenderam repetidamente da maneira mais difícil, da Tunísia ao Sudão e ao Sri Lanka, a fuga ou a derrubada do chefe de um regime, embora acenda o potencial revolucionário, não garante por si só a sua realização. A maquinaria podre dos regimes anteriores agarra-se tenazmente ao seu poder, enquanto a classe dominante luta para formar um novo arranjo que os beneficie, tentando restaurar o status quo contra o qual as massas acabaram de se levantar.


Entre os nomes originalmente apontados para o novo governo interino estava o general aposentado Iqbal Karim Bhuiyan, que, como chefe do exército, conspirou com a Liga Awami para fraudar as eleições gerais de 2014. Estas figuras reacionárias e corruptas personificam a tentativa do antigo sistema de manter o controle. 


Quanto aos principais partidos da oposição, também não oferecem nenhuma alternativa genuína: seu registro mostra que defendem o mesmo sistema de patrocínio e colaboração estreita com as grandes empresas internacionais que a Liga Awami. O PNB de direita não declarou o seu apoio à luta estudantil até 18 de julho, na esperança de capitalizar de forma oportunista um movimento com o qual não tinha envolvimento. 


Os principais líderes dos Estudantes Contra a Discriminação propuseram um governo interino liderado por Dr. Muhammad Yunus, ganhador do prêmio Nobel e o chamado “pai do microcrédito”. À medida que este artigo é publicado, é relatado que Yunus irá de fato liderar o governo interino. Esta decisão surge na sequência de negociações entre o Presidente Mohammed Shahabuddin, os líderes dos protestos estudantis, os chefes das forças armadas, líderes empresariais e membros da “sociedade civil”. 


Este é um grande erro dos líderes estudantis, que deveriam ficar fora de qualquer acordo como esse com a classe dominante. Os grandes empresários, os generais militares e um Presidente que esteve estreitamente alinhado com a Liga Awami ao longo da sua carreira não deveriam ter voz no decorrer da revolta! Envolver representantes do movimento em tais conspirações antidemocráticas é uma tática antiga para fornecer uma fachada de legitimidade às manobras da contra-revolução e aplacar a luta nas ruas. Além disso, embora Yunus tenha apoiado retoricamente o movimento estudantil, continua a ser um banqueiro e defensor do “mercado livre”, cujo modelo de microcrédito fez mais para mercantilizar a pobreza do que para aliviá-la. A sua noção de “capitalismo altruísta” é uma contradição em termos, uma vez que a maximização do lucro e a exploração estão enraizadas no ADN do capitalismo.


Nenhuma confiança em líderes militares e políticos que não desempenharam nenhum papel na revolta


Ao enfrentar uma violência horrível e forçar a saída de Sheikh Hasina, o movimento revolucionário alcançou uma vitória importante, que milhões de pessoas no Bangladesh e na diáspora celebram legitimamente. Muitos governantes internacionais e grandes empresas com interesses instalados nas notórias fábricas exploradoras do Bangladesh estão, sem dúvida, ansiosos por que o gênio revolucionário seja contido. 


Não menos importante, entre eles está o governo de Modi da Índia. Tendo cultivado laços estreitos com o regime de Hasina durante anos, teme as consequências geopolíticas de uma mudança de poder no Bangladesh se o país escapar das mãos da Liga Awami. Talvez o mais importante seja o fato de estar apreensivo sobre ver uma segunda revolta de massas que derrubará um governante autocrático no seu quintal  dentro de dois anos (primeiro Sri Lanka e agora Bangladesh). O exemplo dado pelas massas revolucionárias do Bangladesh é, de fato, uma poderosa fonte de inspiração para os trabalhadores, para a juventude e as pessoas oprimidas na região e a nível mundial, e que deve ser defendida e imitada.


A vitória de segunda-feira foi forjada exclusivamente através da própria força do movimento de massas, e essa lição vital, extraída do sangue de centenas de mártires, deve ser lembrada no futuro, para evitar que esta vitória seja usurpada. O povo revolucionário não deve confiar nem envolver-se nas manobras de bastidores para formar um governo com figuras que não desempenharam nenhum papel nesta luta heróica. Estas estratégias visam arrancar o controle da revolta e, em última análise, esmagá-la.


Em vez disso, o movimento deve sustentar e aprofundar o  impulso que vem da sua  base, construindo as suas próprias estruturas democráticas para uma verdadeira representação revolucionária, independente de todas as facções da classe dominante capitalista. O estabelecimento de comitês do levante em todas as localidades, instituições educacionais, locais de trabalho e bairros ajudaria a discutir democraticamente as demandas e a coordenar ações, a defender-se contra ataques de forças estatais e paraestatais e a desafiar sistematicamente o aparato estatal corrupto e o governo opressivo dos gerentes de fábrica. Também lançaria as pedras fundamentais para um governo revolucionário constituído por representantes genuínos eleitos democraticamente e responsáveis ​​perante os estudantes, os trabalhadores e todas as forças combatentes da revolta. 


Estas forças demonstraram notável energia, heroísmo e capacidade organizacional – qualidades que apontam para o futuro. Na terça-feira, com a polícia em greve, jovens e estudantes assumiram o comando, administrando o trânsito e organizando a limpeza das estradas. Esta imagem  revela o potencial para uma sociedade enraizada na democracia revolucionária e na solidariedade genuína. Mas este potencial precisa de ser aproveitado e organizado de forma eficaz, ou irá sucumbir. 


O movimento deve mobilizar-se e avançar corajosamente com o seu próprio conjunto de reivindicações, apresentando um programa que possa atrair todos os setores progressistas da sociedade numa luta pela mudança revolucionária. Deve lutar pela verdadeira democracia a todos os níveis – o direito à greve, à formação de sindicatos e ao protesto sem receio de assédio, à libertação imediata de todos os estudantes, manifestantes e ativistas políticos detidos, ao desarmamento e à prisão de todos os responsáveis ​​pelo assassinato manifestantes; poderia até fazer campanha para que os soldados elegessem os seus próprios oficiais e, desta forma, desafiar o poder arbitrário dos chefes do exército e facilitar o expurgo das figuras mais notórias das forças armadas e de segurança.


Alguns relatórios sugerem que os Hindus têm sido alvo de elementos islâmicos radicais no meio da agitação geral. Embora estes relatórios sejam extremamente exagerados pela extrema-direita Hindu e pelos apoiantes de Modi na Índia para desacreditar a revolta do Bangladesh e ofuscar exemplos de solidariedade inter-religiosa (como os muçulmanos que protegeram  templos e igrejas em todo o país), o perigo do comunalismo religioso permanece real. O movimento deve permanecer firme contra qualquer forma de opressão e perseguição de minorias e contra qualquer tentativa de fomentar a divisão comunitária, e defender a total igualdade de direitos para todos os setores da sociedade. Como explicou um estudante citado pela CNN: “Até que as nossas minorias religiosas e étnicas sejam protegidas e a justiça também chegue até eles, a nação não é livre”. 


É claro que a luta por empregos dignos e por um salário digno para todos, indexado à inflação, deveria estar no topo da agenda dos movimentos. Mas estas questões não podem ser separadas do quadro geral: o fato de a riqueza do Bangladesh fluir predominantemente para uma pequena elite e entidades estrangeiras, enquanto cada vez mais bangladeshianos são empurrados para a pobreza extrema, a fome, a compressão salarial e o desemprego... a própria Sheikh Hasina e a sua família detêm uma riqueza considerável, com grandes investimentos e patrimônios em terras agrícolas, imobiliário, piscicultura e outros. A empresa de investigação Wealth-X, com sede em Nova Iorque, identificou o Bangladesh como um dos cinco países com maior crescimento em termos de “indivíduos com elevado património líquido”. De acordo com o Relatório Anual sobre Desigualdade de 2023 da Oxfam, os 10% mais ricos da população controlam agora 41% do rendimento total do país, enquanto os 10% mais pobres recebem apenas 1,41% da parcela.


Qualquer governo “interino” também será convocado para se dedicar às medidas de austeridade e privatização que o governo liderado por Hasina concordou em 2023 como condições para um resgate de 4,7 mil milhões de dólares do IMF – apenas agravando o desemprego crônico, os salários de pobreza, as desigualdades e as terríveis condições de trabalho dominando a vida de milhões. 


A revolta deve defender medidas radicais para enfrentar a pilhagem sistêmica e parasitária da economia, que está no cerne das origens do movimento. Isto implica rejeitar as ordens anti-pobres do Fundo Monetário Internacional e colocar os setores económicas estratégicas do país - como os bancos, o sector energético e a indústria do vestuário - na propriedade pública democrática e no controle dos trabalhadores, com o objetivo de planejar a produção e reorganizar sociedade de acordo com as necessidades humanas ao invés do lucro privado. Com a riqueza da sociedade assim gerida coletivamente, poderia ser realizado um encurtamento geral da jornada de trabalho semanal e um grande investimento público em projetos sustentáveis ​​e socialmente úteis. Estas medidas poderiam criar milhões de empregos e melhorar enormemente a qualidade de vida de todos. Uma transformação socialista revolucionária é a única forma de acabar com o sofrimento interminável que o capitalismo reserva aos estudantes, a juventude, aos trabalhadores, aos camponeses e aos pobres do Bangladesh. 

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