A violência de gênero é uma problemática complexa e constante que atinge todas as meninas e mulheres. No Brasil, uma mulher é vítima de feminicídio a cada seis horas. O feminicídio acontece quando uma mulher é morta por ser mulher, o qual foi estabelecido como crime no Brasil apenas em 2015.
Quando falamos de violências que não resultaram em morte, os números também são alarmantes. O Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública de 2024¹ indicou que todas as formas de violência contra mulheres cresceram: a doméstica, a psicológica, stalking, ameaças, tentativas feminicídio, assédio sexual, divulgação de cena de sexo expondo a mulher. Quase 64% das vítimas são mulheres negras e a maior parte das violências são cometidas por homens próximos às vítimas.
Esse tipo de violência acontece não apenas com mulheres adultas, mas desde quando somos crianças. Entre os anos de 2021 e 2023, foram notificados quase 165 mil estupros de garotas com até 19 anos de idade. A maior incidência da violência acontece entre 10 e 14 anos de idade, sendo quase 50% das vítimas. Nesse período, também cresceu o número de violência sexual contra crianças de até 3 anos de idade. Vale salientar que, nessa idade, algumas crianças sequer desenvolveram completamente a fala para poderem comunicar as violências sofridas. É também importante salientar que, quando se trata de violência sexual contra crianças e adolescentes, há muita subnotificação. Em todas as idades, essa forma de violência incide majoritariamente em meninas, sendo 80 a 90% das vítimas e 55% delas são garotas negras, o que demonstra a combinação entre machismo e racismo. As meninas indígenas também têm sido violentadas². Dados de fevereiro desse ano indicam que pelo menos 30 crianças yanomami engravidaram a partir do estupro de garimpeiros. Ou seja, além da expropriação das terras e contaminação das águas, o garimpo tem sido uma face brutal do machismo, racismo e colonialismo para indígenas.
Essas formas de violência, quando não atingem o limite da vida, como é o caso do feminicídio, deixam profundas marcas na vida das pessoas que viveram violências. E, apesar de essas formas mais brutais de violência nos saltarem aos olhos, essa é apenas uma das muitas expressões da violência de gênero que vivenciamos cotidianamente.
Em todas as idades, o lugar mais perigoso para meninas e mulheres têm sido suas próprias casas, seja pelas violências que mencionei anteriormente, ou ainda pelo machismo cotidiano que se expressa, por exemplo, na divisão desigual do trabalho doméstico e de cuidado não remunerado. Em meados de 1909, a militante revolucionária russa Krupskaia escreveu um artigo cujo título indagava “Deve-se ensinar “coisas de mulher” aos meninos?”. Naquela ocasião, Krupskaia se referia a “tudo aquilo sem o qual não se pode viver e cujo desconhecimento torna a pessoa impotente e dependente dos outros”.
Os mesmos questionamentos feitos por Krupskaia permanecem até os dias de hoje, considerando que pouco mudou na realidade que vivemos e o funcionamento das relações sociais, com as múltiplas opressões, faz parecer que esse é um trabalho “natural de mulheres” e não de toda sociedade para manutenção da vida. Recentemente tem se falado sobre weaponized incompetence, que se refere a capacidade do homem de dizer que não sabe fazer bem uma coisa para que nós mulheres façamos por eles. Anabela Gonçalves destaca que frases como “sua comida é bem melhor”, “ninguém faz como você”?, em sua maioria de homens, são uma estratégia de negar as tarefas e responsabilidades diárias, exaltando nossa capacidade de realização³. Essa estratégia não se dá somente na fala, mas na realização das tarefas de forma inadequada para que a gente sinta, que só nós somos capazes de realizar tal feito e que isso é uma habilidade feminina e não humana, que qualquer ser humano com um pouco de vontade poderia fazer.
É sabido desde os tempos de Marx, que os salários são uma ferramenta pela qual o capital governa e se desenvolve. Mas o que ficou invisível durante muito tempo foi aquilo que a falta de remuneração oculta: o trabalho doméstico e de cuidado realizado por mulheres, que foi sempre colocado como alheio ao capital e como ato de amor. Entretanto, diversas autoras da Teoria da Reprodução Social têm destacado que esse tipo de atividade é essencial para o funcionamento da sociedade e da economia, pois dão a base para o funcionamento do mundo produtivo. Cuidar das crianças é um trabalho complexo, interminável e que ocupa uma vida toda. E essa divisão do trabalho doméstico, além de demarcar o gênero, é também explicitamente racial! Não é à toa que o cuidado da casa e dos filhos é repassado para mulheres negras, numa insistente herança escravocrata.
Olhemos para algumas informações importantes: as mulheres gastam mais de 61 horas de atividade doméstica por semana. De acordo com a Organização Internacional do Trabalho, 76% do trabalho de cuidado não remunerado é realizado por mulheres. Um estudo da OXFAM indicou que o trabalho doméstico e de cuidado rende 10,8 trilhões de dólares por ano à economia mundial, cerca de 9% do PIB global. Mesmo com uma contribuição significativa para a sociedade como um todo, esse trabalho é também desvalorizado em termos previdenciários, pois as mulheres que realizam esses trabalhos têm mais dificuldade de conseguir aposentadoria no futuro, estando sujeitas à uma velhice também precária.
Importante salientar que quando esse tipo de trabalho é terceirizado, ele geralmente é realizado por mulheres negras. Um estudo do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE) de 2023, revelou que entre as mais de 6 mil pessoas ocupadas em serviços domésticos no Brasil 92% eram mulheres, sendo 66% delas negras, com idade entre 45 e 59 anos (42%) e pouca escolaridade. E o trabalho doméstico tem um rendimento muito abaixo do rendimento recebido pelo total de mulheres ocupadas. Em 2023, as trabalhadoras domésticas ganhavam menos da metade (45%) do rendimento médio recebido pelo total de mulheres ocupadas, um valor que ficava abaixo do salário mínimo em 2023. Ou seja, as mulheres brasileira ocupadas em serviços domésticos são mais pobres e quando relacionamos com a raça, fica evidente a concentração de trabalhadoras domésticas negras em situação de pobreza: quase 30 % delas eram pobres e extremamente pobres, no período considerado, contra 13,3% e 4,4%, no caso das domésticas não negras. Ainda, dados acerca do Trabalho Infantil Doméstico no Brasil, indicam que em 2019, eram quase 84 mil crianças e adolescentes, de 5 a 17 anos em trabalho doméstico, sendo quase 75% delas garotas negras. Além de ser um problema, desencadeia outros problemas como não ir à escola, ter piores perspectivas de futuro, não ter direito à infância e ao desenvolvimento integral. Importante dizer que o trabalho doméstico remunerado-formal-externo no Brasil está intrinsecamente ligado à história de escravização de pessoas negras no período colonial. Com o final da escravização, a demanda por trabalhadores domésticos continuou, mas recaiu sobre mulheres negras e pobres, que não tinham outras oportunidades de trabalho, pois o Estado Brasileiro intencionalmente criou uma política de embranquecimento, trazendo imigrantes italianos, alemães, espanhóis, portugueses, poloneses, para ocupar espaços formais de trabalho e muitas vezes fornecendo terra para que pudessem plantar. Dessa forma, os trabalhos considerados “menos dignos” foram destinados à população negra recém liberta.
Isso coloca, historicamente, uma condição diferente para as mulheres brancas e não-brancas, inclusive em termos de lutas. Enquanto as mulheres negras sempre tiveram que trabalhar, sendo consideradas as mais “fortes” para o trabalho, um ideal de feminilidade frágil e delicado foi destinado às mulheres brancas. Isso se perpetua até os dias de hoje, quando vemos algumas expressões de violência de gênero direcionadas às mulheres negras. Como por exemplo, sobre a falácia do corpo negro forte, são também as mulheres negras que estão submetidas à violência obstétrica, ou seja, no momento do parto sofrem uma série de violências como não serem anestesiadas por serem consideradas “fortes”. Essas são expressões do racismo estrutural, institucional também conectadas ao machismo e ao classismo, já que tais mulheres violentadas também são as mais pobres.
As mulheres negras são as que ocupam os piores postos de trabalho, que estão mais no mundo informal. São aproximadamente 3 milhões de mulheres negras desocupadas e quase 2 milhões “desalentadas”, ou seja, que desistiram de buscar trabalho porque acham que não vão encontrar. A maior parte dessas mulheres vivem nas periferias urbanas, em moradias improvisadas, que se alimenta de ultraprocessados, que gastam mais tempo em transportes público para realizar tarefas cotidianas, que têm pior acesso aos direitos sociais, ou seja, tem as piores condições para viver. É nas periferias urbanas, onde se concentra a maior parte dessa população negra brasileira, que tem vivido os piores efeitos das mudanças climáticas: as fortes chuvas destroem as casas e tudo é perdido, ou as deixam sem energia elétrica por dias como aconteceu recentemente em São Paulo.
Com isso, destacamos que é necessário partir dessa base, da análise dialética dessas condições de vida, e mais ainda, da experiência dessas mulheres para podermos construir um programa feminista antirracista e socialista. É dessa perspectiva que devemos organizar a luta em defesa das vidas de todas as mulheres, contra todas as desigualdades de violência de gênero e racial!
A organização dessas lutas precisa ocorrer em conjunto, coletivamente e internacionalmente! Venha construir o Rosa Internacional e as Feministas Antirracistas Socialistas com a gente!
1 Anuário de Segurança Pública de 2024: https://apidspace.forumseguranca.org.br/server/api/core/bitstreams/c2423188-bd9c-4845-9e66-a330ab677b56/content
2 FUNAI alerta para violência contra crianças indígenais: https://www.gov.br/funai/pt-br/assuntos/noticias/2023/funai-alerta-para-a-invisibilidade-das-violencias-cometidas-contra-criancas-indigenas
3 Incompetência armada - vocabulário de violência: https://desenrolaenaomenrola.com.br/colunas/incompetencia-armada-vocabulario-da-violencia/
4 Trabalho de cuidado: uma questão também econômica: https://www.oxfam.org.br/blog/trabalho-de-cuidado-uma-questao-tambem-economica/
5 A dificuldades das trabalhadoras domésticas no mercado de trabalho e na chefia do domicílio, boletim DIEESE: https://www.dieese.org.br/boletimespecial/2024/trabalhoDomestico.html
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