A brutal ditadura de Assad, que dura mais de meio século, caiu na Síria. Milhares e milhares de presos políticos puderam se reunir com as suas famílias, muitos deles depois de anos em que se julgavam mortos. Outros milhões de desalojados locais estão comemorando o reencontro com as suas famílias. A perda do controle do medo sobre as pessoas é visível nas ruas de toda a Síria e na diáspora.
À medida que a euforia vai se dissipando, muitos começam a se preocupar com o que o futuro lhes reserva, esperando cautelosamente que a tragédia da esmagada Revolução Síria tenha agora terminado. Embora muita coisa ainda não esteja clara, a história mostra que isso exigirá uma reconstrução decisiva de organizações de trabalhadores genuínas e politizadas como uma força de massas armada com as lições de 2011 e capaz de apresentar uma alternativa real ao Hayat Tahrir al-Sham (HTS), a todas as forças reacionárias e às potências imperialistas: para construir uma sociedade genuinamente livre, democrática e justa é necessária a unidade das massas trabalhadoras e pobres da Síria para lutar contra todas as formas de sectarismo e opressão, e levar a revolução ao nível de derrubar também a ditadura econômica do capitalismo e dos seus vários representantes imperialistas.
O odiado regime do ditador Bashar al-Assad entrou em colapso de forma surpreendente quando as forças militares da coligação liderada pelo HTS varreram as cidades de Alepo, Hama, Homs antes de entrarem em Damasco, numa ofensiva relâmpago que durou apenas onze dias. No caminho, as forças militares do regime pareciam simplesmente derreter no ar. Em Damasco, as multidões gritavam "Assad se foi, Homs é livre". No entanto, no meio do alívio e do entusiasmo, há também receios e preocupações entre setores da população síria sobre o que virá a seguir. As zonas autônomas do Curdistão sírio já estão sendo sofrendo com ataques apoiados pelos turcos e a abordagem dos novos governantes em relação aos direitos dos curdos e das mulheres será um indicador do que está por vir.
Em muitos locais, as forças armadas da oposição foram recebidas por apoiadores que as aplaudiam e enfrentaram pouca ou nenhuma resistência civil ou militar. Assim que entraram em Damasco, libertaram os prisioneiros detidos na famosa prisão militar de Sednaya, palco de horríveis torturas de apoiadores da oposição pelos capangas de Assad. A embaixada iraniana, vista como um das principais apoiadoras do regime, foi saqueada, enquanto os combatentes do HTS entraram no palácio presidencial, fotografando-se sentados atrás da mesa no gabinete de Assad.
Alguns dos milhões de sírios que foram forçados a fugir para o estrangeiro para escapar ao regime brutal já estão retornando. Ao mesmo tempo, as forças de direita e de extrema-direita estão utilizando cinicamente o momento para promover a sua agenda racista. A Alemanha, a Áustria, a Grécia e Chipre já suspenderam os pedidos de asilo provenientes da Síria e há ameaças de deportação de refugiados que já se encontram na Alemanha. Os sírios e todos os refugiados devem ter a garantia do direito voluntário de regressar ou permanecer no seu novo local de residência com todos os direitos e sem discriminação.
As embaixadas sírias em Istambul, Atenas e até em Moscou hastearam a bandeira da oposição. Os países vizinhos estão reforçando as suas fronteiras. O exército libanês enviou unidades militares para "proteger" as suas fronteiras norte e leste, enquanto as forças de "defesa" israelenses enviaram tropas e tanques para além da "zona tampão" ocupada das Colinas de Golã, marcando a primeira entrada de Israel em território sírio formal desde 1973. Segundo o jornal israelense "Maariv", as Forças de Defesa Inraelenses têm disparado contra a aldeia de Barika, na zona tampão, para manter os militantes afastados da fronteira.
Assad deixou Damasco num avião russo Ilyushin que foi visto mais tarde voando a uma baixa altitude antes de desaparecer do radar, aparentemente uma manobra para disfarçar a fuga. Fontes do regime russo confirmam agora que Assad e a sua família estão em Moscou e que lhes foi concedido asilo político.
O poder, de acordo com a declaração do comandante do HTS, al-Julani, foi entregue temporariamente ao primeiro-ministro em exercício al-Jalali, que supervisionará todas as instituições do Estado até à transferência oficial. Nas primeiras emissões na televisão síria, a oposição anunciou alegremente que "ganhamos a aposta e derrubamos o regime criminoso de Assad". No entanto, apesar de toda a sua retórica sobre a libertação do país do domínio de Assad, parece que o HTS já está disposto a colaborar com um primeiro-ministro nomeado por Assad para garantir uma transição "organizada" por cima. Isto deveria ser um aviso de que o HTS prefere não permitir que o povo sírio molde o seu próprio futuro.
Al-Julani está claramente se esforçando para projetar uma imagem renovada de estadista civil e aceitável para o Ocidente - em outras palavras, sinaliza que pode oferecer mãos confiáveis para estabelecer uma nova ordem no quadro das tensões inter-imperialistas. A sua pregação de tolerância para com todos os grupos étnicos e religiosos e de "não vingança" representaria, se concretizada na prática, um espaço de manobra bem-vindo. Mas algumas das contradições inerentes às manobras e acomodações entre potências imperialistas e regionais já estão evidentes nos ataques turcos às zonas autônomas do Curdistão sírio. E o histórico do HTS no poder na província de Idlib aponta para o risco de um regime opressivo, de direita e fundamentalista, a menos que os trabalhadores e os pobres se organizem para garantir que isso não aconteça.
Quem era Assad?
O Partido Ba'ath (Partido Ba'ath "socialista" árabe) chegou ao poder pela primeira vez na sequência da Revolução de 8 de março de 1963, mais parecida com um golpe militar, embora com apoio popular. Este foi um período em que as massas em muitos países do mundo, cujas economias tinham sido exploradas por décadas de domínio imperialista, estavam lutando pela revolução. Na ausência de forças revolucionárias de massas genuinamente de esquerda, camadas das forças armadas, apoiadas pela URSS, tentaram tomar o poder. O regime policial e de partido único que daí resultou utilizou os métodos autoritários da burocracia soviética para manter o controle, mas ganhou uma certa autoridade devido à nacionalização da economia e ao desenvolvimento dos padrões de vida.
O pai de Bashar al-Assad, Hafez al-Assad, que tinha participado ativamente no golpe de 1963, foi, em 1966, um dos principais instigadores de um novo golpe no seio da elite dirigente e, em 1970, de um terceiro golpe que o deixou como Presidente. Continuando a se apoiar na URSS, foi mais "pragmático" na sua relação com a propriedade privada, minando os benefícios do planejamento estatal e introduzindo na estrutura do Estado a divisão sectária segundo linhas religiosas. Após a sua morte em 2000, foi sucedido pelo filho, Bashar.
Com o colapso da URSS em 1991, Hafez abriu a Síria ao capitalismo global, um processo que se intensificou com Bashar. A privatização da propriedade do Estado, a austeridade, o desemprego em massa e a terrível desigualdade, combinados com uma rápida acumulação de riqueza nas mãos da família governante e de um círculo restrito de elites ligadas ao regime, alimentaram o descontentamento das massas, que contribuiu para a revolta na Síria em 2011, parte da onda de levantes revolucionários que se espalhou pelo Norte de África e pelo Oriente Médio .
Embora Bashar não usufruísse do mesmo grau de autoridade pessoal que o pai, em 2011, manteve a lealdade das principais instituições do regime, que foram fundamentais para orquestrar uma repressão brutal da revolta. Esta repressão assumiu uma componente cada vez mais sectário, com a utilização de forças dominadas pelos alauítas contra áreas da oposição predominantemente sunitas.
A revolução de 2011 não careceu de um comprometimento heróico nem de apoio de massas, embora, devido à exploração de longa data das divisões sectárias pelo regime através do medo e de redes de clientelismo, esse apoio não fosse uniforme entre as diferentes comunidades. Mas a sua conclusão vitoriosa exigia a queda do regime de Assad, o desmantelamento de todas as suas instituições repressivas, a expulsão de todas as forças imperialistas da Síria e a substituição da exploração capitalista por um planejamento socialista, gerido por estruturas democraticamente eleitas que unissem a classe trabalhadora e os pobres de todos os grupos étnicos, gêneros e credos
Mas nenhuma força política, mesmo em pequena escala, articulou um programa deste tipo. Os sindicatos, por seu lado, não desempenhavam um papel significativo na oposição, pois tinham sido esmagados ou absorvidos pelo aparelho de Estado ao longo de décadas. A Federação Geral dos Sindicatos da Síria (SGFTU), o principal órgão "sindical" do país, funcionava como um braço do regime, sufocando o potencial do movimento operário de desempenhar um papel independente na revolta.
Em vez disso, o poder permaneceu nas mãos da elite corrupta de Assad. O país mergulhou numa guerra civil, com a intervenção de diferentes forças imperialistas (turcas, norte-americanas, russas, iranianas e outras) e religiosas, que viram o regime recorrer a uma violência brutal contra as massas, incluindo a utilização de armas químicas. A guerra fez mais de meio milhão de mortos e provocou a maior crise de deslocamentos da história, com mais de 13 milhões de sírios - mais de metade da população anterior à guerra - desabrigados à força, quer internamente,quer para o estrangeiro.
Inicialmente, o "Exército Sírio Livre" (ESL) foi formado por um grupo de oficiais desertores do exército, simpatizantes da oposição. Desde o início, não dispunha de uma estrutura de comando unificada e assemelhava-se mais a um conjunto de vários grupos armados do que a um exército centralizado. Ele clamava pela queda de Assad e à transição para um regime democrático e pluralista. No entanto, a sua estratégia não tinha nada em comum com uma verdadeira revolução social, mas tentava utilizar táticas de guerrilha para minar o regime, contando com a ajuda de potências ocidentais e regionais para conduzir as suas campanhas. No entanto, o Ocidente tinha os seus próprios interesses.
A intervenção do Irã, que utilizou os seus militantes para apoiar o regime, juntamente com o apoio financeiro e militar prestado aos grupos armados islâmicos por regimes sunitas como a Arábia Saudita e o Qatar, bem como pela Turquia, aumentou as divisões sectárias no país, uma vez que o Exército Sírio Livre viu a sua posição enfraquecer. Cada vez mais, a guerra civil degenerou num conflito multivetorial entre diferentes milícias que apoiam os interesses de potências imperialistas concorrentes e/ou sob o controle de fundamentalistas religiosos.
A intervenção militar da Rússia, iniciada em setembro de 2015, foi ostensivamente para ajudar a combater o "Estado Islâmico" (Daesh), mas foi principalmente dirigida contra as forças do FSA, apoiadas pelo imperialismo norte-americano, e desempenhou o papel fundamental de apoiar o regime de Assad. Sem o apoio russo e iraniano, o regime Ba'athist teria desmoronado há muito tempo.
De acordo com uma análise do veículo "Syria direct", a economia está em queda livre desde 2011. A libra síria perdeu 99,64% do seu valor em relação ao dólar e o colapso agravou-se nos últimos anos. Atualmente, a impressão de uma cédula custa mais do que o seu valor real. Cerca de 90% da população vive na pobreza, dependendo normalmente das remessas enviadas por familiares que trabalham no estrangeiro para sobreviver. As políticas desumanas dos governos ocidentais em relação aos refugiados da Síria em nada contribuíram para ajudar a população, enquanto o efeito das sanções ocidentais apenas conseguiu ajudar Assad a construir uma rede apertada de comparsas corruptos em torno do seu círculo íntimo.
O que explica a rápida vitória do HTS?
A rápida vitória do HTS não pode ser explicada por fatores puramente internos. Enquanto os olhos do mundo se viram para Gaza e para a Ucrânia, o efeito destes conflitos, que levou a um enfraquecimento dramático da posição de Assad, passou quase despercebido.
O Hezbollah, atuando em parte por interesse próprio, mas também em nome do regime iraniano, tem sido fundamental no apoio ao regime de Assad, em particular no seu conflito com as forças do Daesh. Agora que o Hezbollah sofreu sérios golpes militares pelas FD Israelenses, decapitando a sua liderança e perdendo grande parte do seu equipamento, não está em posição de apoiar Assad como fez no passado.
Simultaneamente, o Kremlin retirou as suas forças da Síria, desviando-as para o Leste da Ucrânia e para Kursk, onde tem tido dificuldades. Assad viu-se, assim, sem o apoio de dois componentes fundamentais do seu poderio militar, sem os quais teria sido deposto há alguns anos. Os repetidos ataques aéreos de Israel a instalações iranianas na Síria contribuíram ainda mais para diminuir a capacidade do Irã de apoiar as forças de Assad.
Embora pareça que os EUA tenham sido pegos desprevenidos por este rápido sucesso, o regime turco aproveitou a oportunidade oferecida pelas fraquezas do Hezbollah e da Rússia para pressionar o HTS a avançar mais. Em parte, o fez com o objetivo de enfraquecer e pressionar o regime sírio, na sequência do impasse das suas negociações de normalização, levando a cabo o repatriamento forçado de milhões de refugiados sírios de volta à Síria e, provavelmente o mais importante, permitindo-lhe tomar novas medidas contra as regiões autônomas do Curdistão sírio no norte.
No momento em que escrevemos este artigo, há relatos de combates intensos entre o SNA (Exército Nacional Sírio, constituído por várias fações diferentes, algumas das quais muito próximas do regime turco e que lutaram pelos interesses militares turcos também "fora da Síria, incluindo no Azerbaijão, na Líbia e no Níger"), apoiado pela Turquia, e as milícias curdas locais, em Manbij. De acordo com a rede de comunicações independente "Bianet", o SNA tem sido apoiado por "extensos bombardeios terrestres das Forças Armadas turcas". A renovada e desoladora vulnerabilidade dos curdos, acompanhada por milhões de pessoas que temem que Kobane seja o próximo alvo, sublinha mais uma vez a armadilha que é confiar nas manobras entre potências imperialistas concorrentes.
Além disso, o regime de Assad não passou de um invólucro vazio. Há muitos relatos de que o seu exército simplesmente depôs as armas à medida que o HTS avançava e, quando chegou a Damasco, a hierarquia do exército nem sequer tentou resistir. O exército sírio simplesmente abandonou o seu equipamento - os combatentes do HTS tiraram fotografias sentados nnas cabines de voo dos aviões de combate deixados para trás. Em outros locais, os soldados apareceram caminhando pela estrada em trajes civis, com os seus uniformes militares simplesmente deixados em pilhas no chão.
Assad encontrou tão pouco apoio entre a população, aliados e opositores, que nos últimos dias se viu isolado. Apelou à ajuda dos russos, mas estes disseram que não tinham recursos para o fazer. Apesar das promessas públicas de apoio ao regime de Assad por parte do regime iraniano, na sexta-feira este último tinha começado a evacuar as suas forças militares do terreno, incluindo os comandantes superiores da Força Quds - abandonando efetivamente Assad à própria sorte. Aparentemente, Assad pediu ajuda indiretamente a Trump, que lhe virou as costas. Ele ofereceu negociar com o HTS, mas eles não viram necessidade. Mesmo na cidade alauíta de Qardaha, a cidade natal da família al-Assad, multidões derrubaram estátuas do seu pai.
Quem é o Hayat Tahrir al-Sham?
A Hayat Tahrir al-Sham - Organização para a Libertação do Levante - é mais um conjunto de milícias armadas. O seu líder, Abu Mohammed al-Julani, foi apoiante do Daesh no período posterior a 2011, tendo sido encarregado de criar a Jabhat al-Nusra para lutar pela criação de um Estado Islâmico na Síria. Segundo a Al-Jazeera, al Julani separou-se depois do Daesh, jurou fidelidade à Al-Qaeda e, em 2017, rejeitou-a para formar o HTS. Esta decisão foi acompanhada por uma mudança de objetivos, passando da luta pela criação de um califado para a "libertação" da Síria do regime de Assad e a criação de uma república nacional islâmica.
O HTS tornou-se uma força séria, entre as milícias mais fortes a combater na Síria, após a recaptura de Alepo, em 2016, pelas forças de Assad, apoiadas pelo poder aéreo russo. Muitos combatentes da oposição que fugiram de Alepo acabaram em Idlib, que em 2017 estava efetivamente sob o controle do HTS, com cerca de 30 000 combatentes. Este controle proporcionou uma base econômica ao HTS, uma vez que grande parte do petróleo do país flui através da região para o principal porto de Latakia e uma das principais passagens fronteiriças com a Turquia está sob o controle do HTS.
Dirigiu o governo (o chamado "Governo de Salvação da Síria"), prestando serviços como escolas e cuidados de saúde, bem como a distribuição de ajuda, enquanto o regime de Assad prosseguia a sua terrível campanha de bombardeamento. Centenas de milhares de sírios fugiram para a região numa tentativa desesperada de chegar à Turquia, mas encontraram a fronteira fechada. Vivem em campos de refugiados, na sua maioria sem eletricidade e em condições desesperadas. Um residente ironiza: "Aqui as pessoas são iguais - todos partilham a pobreza, a falta de comida e a falta de trabalho".
No entanto, o HTS tem governado a região como um Estado islâmico autoritário. Os jornalistas da oposição são detidos e a prática de "pessoas desaparecidas" é generalizada. As mulheres são obrigadas a usar o hijab, não são autorizadas a frequentar cursos importantes na universidade e as escolas estão segregadas por gênero. Mas a memória da revolta de 2011 continua forte, levando à resistência; como explicou uma mulher, "a revolução síria quebrou tabus". Já em setembro, as mulheres de Idlib organizaram manifestações contra as políticas de segurança e a repressão do HTS e exigiram o afastamento do seu líder al-Julani.
Abutres imperialistas pairam
De repente, apesar de terem sido pegos desprevenidos pelo rápido avanço do HTS, que foi descrito como uma "organização terrorista" pelos EUA, Reino Unido, UE, Rússia, Turquia e outros, os governos estão a reavaliar a sua abordagem à Síria - não para ajudar as massas a melhorar a sua situação, mas para agarrar o que podem. Hipocritamente, governos como o do Reino Unido estão apressados para retirar o rótulo de "terrorista".
O Irã perdeu um parceiro estratégico fundamental. Grande parte da sua ajuda ao Hezbollah passou pela Síria, um elemento-chave do "Eixo de Resistência" do Iran, que esperava que se opusesse ao imperialismo ocidental na região. A Rússia perdeu um aliado fundamental no Oriente Médio, um governo que tinha essencialmente protegido do colapso nos anos anteriores. Tardis, no norte da Síria, é a principal base naval ultramarina da Rússia, utilizada não só para ajudar os ataques aéreos de Assad à sua oposição, mas também para desafiar a influência da OTAN no Mediterrâneo. A sua base aérea de Hmeymin também era fundamental como centro de transporte para apoiar as operações das forças russas (incluindo a do grupoWagner) no Sahel e em outros locais da África. Há dias que estão retirando navios e aviões e, mesmo que o Kremlin consiga chegar a um acordo com o novo governo, ele já sofreu um enorme golpe no seu prestígio.
Enquanto os olhos do mundo se viram para a tomada de Damasco, os EUA estão calculando como podem explorar aquilo que Biden chamou um "momento de risco" e uma "oportunidade histórica". Aproveitaram o fim de semana para enviar uma frota de bombardeiros para atacar 75 alvos do Daesh. Mas enquanto Trump rapidamente tweetou em letras maiúsculas que "Esta não é a nossa luta. Deixemos que se desenrole. Não nos envolvamos", é evidente que os Estados Unidos se vêem obrigados a reavaliar profundamente a sua estratégia. De acordo com o Conselho Atlântico, "a abordagem dos EUA à Síria durante a última década – tolerar Assad e os seus patronos iranianos, concentrar-se no Estado Islâmico, prestar assistência humanitária mas cessar a ajuda política e militar à oposição, dar apoio ilimitado ao YPG/PKK – entrou em colapso. Washington, e Jerusalém terão de encontrar uma abordagem coerente e construtiva para a nova gestão em Damasco".
Israel, naturalmente, tendo reivindicado a responsabilidade de ajudar na queda de Assad ao destruir a capacidade do Hezbollah, já aproveitou a oportunidade para expandir a sua presença na Síria. Netanyahu ordenou às FD israelenses que avançassem mais para as Colinas de Golã ocupadas e os meios de comunicação israelenses noticiaram o bombardeamento de depósitos de armas no Norte da Síria e mesmo em Damasco, que, segundo o ministro da Defesa israelense, Katz, será intensificado para "destruir armas estratégicas pesadas em toda a Síria".
Não é de estranhar que o regime israelense tente tirar partido da atual situação na Síria. Mas afirmar, como fazem alguns na esquerda, que a queda de Assad, ao enfraquecer o chamado "eixo de resistência", é um golpe para a luta de libertação dos palestinianos, é ignorar totalmente o fato de que a ditadura de Assad nunca se preocupou nem um pouco com os palestinos. Como muitos outros Estados da região, em vez disso, cinicamente armou a sua causa para reforçar o próprio domínio autoritário. Embora se apresente como defensor anti-imperialista dos direitos dos palestinos, o regime reprimiu as organizações políticas palestinas, sitiou e bombardeou o campo de refugiados de Yarmouk durante a guerra e tem permanecido inativo face ao genocídio em curso em Gaza. Na prática, a trégua com Israel, que dura há décadas, para garantir a tranquilidade nas Colinas de Golã ocupadas, chegou a receber o elogio do próprio Netanyahu, que disse em 2018: "Há 40 anos que não temos problemas com o regime de Assad".
Já a Turquia reforçou a sua posição mesmo em oposição aos interesses dos EUA e dos seus parceiros da OTAN. É evidente que, apesar de descrever o HTS como uma organização terrorista, ajudou-o a obter armas e, ao que parece, encorajou o seu avanço. Está agora aproveitando a oportunidade para expandir a sua presença no Norte.
Isto é, de fato, um aviso. O HTS e as suas milícias agora aliadas podem ter derrotado Assad e tomado Damasco, mas não têm controle incondicional sobre toda a Síria. Neste momento, ao que parece, o HTS não está procurando ativamente atacar as Unidades de Defesa Popular (YPG) e as Unidades de Proteção das Mulheres (YPJ), predominantemente constituídas por militantes curdos. Está tentando projetar "respeitabilidade" junto dos governos internacionais, incluindo os ocidentais.
No entanto, o Exército Nacional Sírio está mais alinhado com a agenda da Turquia, o que poderia levar a uma "divisão de trabalho" entre os dois grupos armados, ou potencialmente desencadear conflitos entre eles sobre as suas respectivas estratégias. Com a total oposição da Turquia à autonomia curda, existe um perigo real, independentemente do que o HTS diz hoje sobre esta ser uma vitória "para todos os sírios", de uma nova fase de guerra com a Turquia no Nordeste para confrontar o YPG/YPJ, o que tem sido apoiado pelos EUA como o seu principal trunfo na luta contra o Daesh.
Nesta situação perigosa, o único aliado confiável do povo curdo na defesa das suas conquistas de autonomia e dos seus direitos democráticos, feministas e laicos, duramente conquistados, são as massas trabalhadoras e pobres de toda a Síria e da região. Um apelo a uma verdadeira revolução socialista que se oponha a todas as elites que governam pelas armas, como fantoches imperialistas ou ocupantes – incluindo as agressões racistas e genocidas do Estado israelense – tem o potencial de desencadear revoltas da classe trabalhadora.
Haverá um caminho a seguir?
Para além das celebrações pela queda do ditador, a realidade do novo regime começará a se impor. Qualquer tentativa de estabelecer um regime segundo as linhas de um Estado islâmico autoritário, como o HTS fez em Idlib, com grandes restrições aos direitos das mulheres e das minorias de gênero, é suscetível de enfrentar a resistência de um povo que está agora sedento de um novo futuro após 54 anos de ditadura de Assads.
Entretanto, o grande golpe que a queda de Assad representa para os interesses e o prestígio do regime iraniano, ao mesmo tempo que encoraja os seus adversários imperialistas até certo ponto, pode também reacender a confiança do povo trabalhador e oprimido dentro do próprio Irã. O recente aumento dos protestos de professores, estudantes e aposentados em todo o país durante o fim de semana pode ser um sinal de uma mudança nesta direção.
Além disso, a derrubada da ditadura brutal, que pode ter parecido inimaginável para muitos há apenas dez dias, poderia reacender as aspirações revolucionárias das massas trabalhadoras e oprimidas contra os seus próprios governantes autoritários em outros países do Oriente Médio e do Norte de África e reforçar ainda mais o espírito de resistência contra o colonialismo e o imperialismo expresso no forte movimento de solidariedade com a Palestina na região.
Oraib al Rantani, diretor do Centro de Estudos Políticos Al-Quds, sediado em Amã, refere num artigo da Bloomberg: "A segunda primavera Árabe vai chegar, não há dúvida, todos os fatores que a impulsionam continuam presentes: pobreza, corrupção, desemprego, bloqueio político e tirania".
Ao mesmo tempo, a natureza militarizada da queda de Assad - através de um grupo armado sem controle democrático de base, e não através da luta de massas e ativa da classe trabalhadora e dos oprimidos - também pode contribuir para um clima de medo e intimidação, e significa que qualquer movimento vindo de baixo pode ter de enfrentar rapidamente o poder militar deste grupo, e a prontidão para o utilizar. O HTS, ele próprio uma coligação de diferentes forças, enfrenta conflitos futuros à medida que surgem diferentes interesses, que outras facções armadas reacionárias disputem o controle e a influência e que o novo regime tente provavelmente derrotar outras forças, como os curdos. A esta mistura, já em si volátil, junta-se a intervenção gananciosa das forças imperialistas, todas elas a pressionar os seus próprios interesses contra os do cidadão comum sírio.
É necessária uma nova abordagem para construir uma sociedade genuinamente democrática, baseada na organização da classe trabalhadora, a única força capaz de unir a população através de linhas nacionais e étnicas, capaz de lutar contra o autoritarismo, a opressão, os ataques aos direitos nacionais e os direitos das mulheres e das pessoas LGBTQ+. Essa força também enfrentaria a terrível situação econômica na Síria, colocando os recursos naturais do país sob controle público. Para isso, seria necessário expulsar todas as potências imperialistas do país e opor-se ao seu controle e interesses, como o controle dos EUA sobre grande parte dos campos de petróleo. Com a riqueza do país sob propriedade e controle públicos democráticos, seria possível estabelecer uma economia planificada democraticamente controlada e lutar por uma federação socialista democrática do Oriente Médio . Embora isto possa parecer longínquo, o mesmo aconteceu com a queda de Assad há apenas algumas semanas. Um primeiro passo deve ser a continuação das manifestações de massa nas ruas e praças e transformá-las em manifestações contínuas para a reconstrução de uma Síria livre de toda a opressão.
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